Para evitar a fiscalização mais rigorosa, traficantes do Brasil e de países vizinhos estão enviando droga pura à Europa pelo continente africano
Por Aline Ribeiro
10/09/2023 06h00 Atualizado há uma semana
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A mensagem interceptada no celular indicava a localização exata no Atlântico Sul: “Aqui dá para ir”, respondeu o interlocutor. “Tá bom, irmão, quantos dias para chegar?”, perguntou o contratante. “Uns 15”. O diálogo entre um brasileiro acusado de tráfico internacional de drogas e seu encarregado da logística marítima foi captado pela Polícia Federal (PF). As coordenadas geográficas apontam para um ponto do Oceano Atlântico no Golfo da Guiné, a 300 quilômetros da costa africana. Segundo relatórios da PF obtidos pelo EXTRA, há “indícios concretos” de que a organização criminosa liderada por André Luiz Miranda do Nascimento, o Andrezão, tenha enviado toneladas de cocaína por esse trajeto em setembro de 2022.
— Um barco pesqueiro saiu de Itajaí (SC), carregou no Rio e foi em direção à África. Será que estava carregado de droga? Não dá para ter certeza. É como dizemos aqui: cosmético é que não estavam vendendo — brincou Cléberson Alminhana, titular da Delegacia de Repressão a Drogas do Rio Grande do Sul, responsável pela investigação.
Na tentativa de driblar as autoridades, traficantes brasileiros estão adotando a rota africana para enviar cocaína pura de países como Bolívia, Colômbia e Peru para a Europa. Na costa de nações como Senegal, Serra Leoa, Guiné-Bissau e Guiné, quadrilhas fazem o transbordo da droga para navios menores.
Dois meses depois da primeira remessa, o mesmo grupo repetiu a operação, desta vez sem tanto sucesso. Em 30 de novembro passado, um navio da Marinha Francesa abordou a embarcação brasileira Peroá perto da Guiné-Bissau. O barco pesqueiro de 21 metros levava 4,6 toneladas de cocaína em cerca de cem malas — carga avaliada em quase R$ 800 milhões. A operação foi um trabalho conjunto da PF, da Drug Enforcement Administration (DEA), da Agência da União Europeia para a Cooperação Policial (Europol) e de autoridades francesas.
Logística pela terra e pelo mar
O exigente e lucrativo mercado de consumo de drogas europeu ainda é o grande alvo das quadrilhas brasileiras. Ali, um quilo da cocaína “tipo exportação” — assim denominado pelo índice de pureza (acima de 90%)— chega a ser vendido por US$ 45 mil, segundo informações da Polícia Federal. Nações africanas, agora, têm entrado no radar desses bandos.
Sob condição de anonimato, um integrante brasileiro da Europol afirma que há duas modalidades de envio de droga do Brasil para a África, ambas com danos potenciais semelhantes: o modal marítimo, por barcos e pesqueiros; e o aéreo, através de mulas que embarcam no avião.
A operação via marítima é lucrativa por conta do envio de grande quantidades da droga de uma só vez — pelo menos, uma tonelada de cocaína, segundo a fonte.
Já o tráfico por aeronaves, com a droga escondida na pessoa ou na mala, leva quantidades menores, mas pode render lucros altos.
— A África, em geral, é apenas o entreposto. Parte da droga fica ali, mas o destino da maioria ainda é a Europa e Ásia — disse o invetigador, ressaltando que o Brasil tem pouca informação sobre a relação das quadrilhas nacionais com as africanas por falta de cooperação internacional com o continente. — Somos um pouco cegos em relação à África. Não temos adidos lá, por exemplo.
Na impossibilidade de guardar com eficiência seus 16 mil quilômetros de fronteira e impedir a entrada ou saída da cocaína, o Brasil passou a investir na fiscalização da saída da droga, em especial em seus portos.
Desde abril de 2016, uma portaria da Receita Federal do Porto de Santos, o maior da América Latina, determinou que todo contêiner com destino a países europeus fosse escaneado. Em 2019, um novo texto incluiu a fiscalização obrigatória das cargas para a África. Naquele ano, o Brasil registrou o recorde de apreensões de cocaína em seus portos (66,9 toneladas), seguido de quedas consecutivas, em decorrência principalmente da pandemia de Covid-19 e o consequente fechamento de bares, baladas e redução do consumo. Foi quando três representantes da África Ocidental entraram para a lista das dez principais nações destinatárias da droga: Nigéria, Gana e Serra Leoa. Um relatório da PF mostra que 3,7 toneladas de cocaína que iriam para os três países foram apreendidas antes de chegarem ao destino.
Depois da abordagem, a droga foi incinerada a bordo. Os cinco tripulantes brasileiros, assim como a embarcação, foram liberados pela Marinha Francesa. Não foi encontrado celular ou telefone no barco, levantando a suspeita de que os aparelhos foram arremessados em alto-mar. No relatório da PF, fotos feitas pela Marinha mostram cada tripulante segurando uma folha sulfite com sua respectiva profissão no Brasil: pescador, motorista, mecânico, motoboy e garçom. O delegado Alminhana afirma que a Marinha Francesa, “por uma questão humanitária”, permitiu aos tripulantes abastecer o barco para voltar ao Brasil e doou mantimentos para a viagem.
Nenhuma autoridade acompanhou o retorno dos tripulantes. Todos estão soltos.
— Por que não foram presos? A explicação foi: para que essas pessoas sejam julgadas pela Justiça francesa, elas teriam de ter ido a um porto francês. Como a abordagem foi em águas internacionais, não seria possível. Todo mundo faz isso? Os americanos prendem e afundam o barco — disse o delegado, que completou. — A tripulação é de menor importância. A gente quer saber quem é o dono. Esses caras são o trabalho braçal.
Organizações contam com estrutura empresarial
A ineficácia dos órgãos de fiscalização e controle e a corrupção explicam a preferência dos bandidos pela rota da África Ocidental. O delegado Elvis Secco, ex-coordenador-geral de Repressão a Drogas, Armas, Crimes Contra o Patrimônio e Facções Criminosas da PF, ressalta que o fechamento das fronteiras durante a pandemia do coronavírus gerou um estoque excedente de drogas na América do Sul e na África. Diante disso, diz, produtores e traficantes de cocaína e haxixe estão tentando encontrar uma saída para escoar as mercadorias ilícitas se aliando a organizações criminosas da Europa Oriental. Trata-se de redes especializadas em transporte marítimo que, para escapar da vigilância e da pressão policial no Estreito de Gibraltar, exploram o chamado “Túnel do Sahel”, rota do narcotráfico que atravessa o continente africano para levar a droga à Europa.
— Essas organizações criminosas têm vastos recursos financeiros obtidos por meio da lavagem de dinheiro do tráfico, dominam o sistema financeiro e instalam uma estrutura empresarial no mercado local do continente onde operam. Assim, conseguem contratar a melhor assessoria jurídica possível, permeando o sistema com práticas de corrupção — afirma o delegado Secco.
Segundo ele, os criminosos que atuam na rota africana são “altamente especializados”, com grande conhecimento de navegação. Já têm representantes nos países produtores de cocaína da América do Sul e estão usando o Suriname, a Guiana Francesa e o Brasil como pontos de saída da droga. Em seguida, desembarcam nas costas de países como Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Guiné, Serra Leoa e Libéria. De lá, cruzam o continente africano até a Líbia ou o Egito, onde embarcam o entorpecente até a Turquia para ganhar o mercado europeu.
Além de seguir pelo continente, outra possibilidade é enviar a droga à Europa via oceano. O delegado Fabrizio Galli, chefe da Delegacia de Repressão a Drogas da Polícia Federal de São Paulo, combate o tráfico de entorpecentes há 20 anos e já apreendeu algumas toneladas de cocaína no percurso via África:
— É mais seguro mandar por ali, há menos vigilância.
Carregamento em cargas lícitas
As malas com 4,6 toneladas de cocaína encontradas no barco pesqueiro a caminho da África eram uma das pelo menos 13 remessas de drogas enviadas à Europa pela organização criminosa liderada, entre outros, por André Luiz Miranda do Nascimento, o Andrezão, e com base no Sul do Brasil, segundo a PF. Em dois anos de investigação, o grupo mandou 17 toneladas de droga para a Europa, mercadoria estimada em R$ 3,8 bilhões.
Os relatórios da PF mostram a dinâmica do bando. O cidadão paraguaio Rodrigo Paredes Alvarenga fornecia carregamentos de cocaína comprada na Bolívia aos donos de empresas de logística marítima no Brasil, espécies de narcoempreendedores, que enviavam para a Europa. A droga entrava em território nacional pela fronteira com o Paraguai, na região de Pedro Juan Caballero e Ponta Porã, atravessava alguns estados de caminhão, logística sob responsabilidade de parceiros, até chegar ao Sul. O envio a partir dali era planejado por Andrezão, apontado como o principal contato do grupo com compradores europeus, em especial dos Bálcãs e da Península Ibérica.
As investigações afirmam que Andrezão e Alvarenga se associaram aos irmãos Cesar de Oliveira Junior e Leandro Gonçalves de Oliveira, membros da alta sociedade gaúcha. Empreendedores do ramo da logística portuária, eles são proprietários de um conglomerado de companhias no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, o complexo CTIL/INTERSUL, que funcionava como um dos canais de envio da droga via portos. Segundo o delegado Cléberson Alminhana, a empresa, herança de família, passou por um boom financeiro em 2016:
— Possivelmente, a partir dali, a organização criminosa começou. Se foram aliciados pelos donos da droga, ou se já faziam jogadas menores, não dá para saber. Até porque o César é empresário conhecidíssimo.
Nas empresas dos irmãos, a droga era inserida em contêineres de diferentes tipos de cargas lícitas, desde carvão a extrato tanante de origem vegetal, sem o conhecimento das empresas contratantes. Altemir Linhares de Melo, superintendente da Receita Federal do Rio Grande do Sul, conta que os criminosos escolhiam insumos mais propícios para mascarar a droga em controles alfandegários:
— As cargas preferenciais são as que têm composição parecida com a da cocaína. Mas a fiscalização do contêiner por scanner não tem tanta fragilidade, a droga em geral passa se houver o envolvimento de operadores portuários no processo. No caso deste grupo, esse era o diferencial. Eles gozavam da intimidade do ambiente aduaneiro.
Um esquema complexo e sofisticado
Para dissimular as grandes cifras movimentadas pelo tráfico internacional, a organização criminosa do Sul usou diversas modalidades de lavagem de capitais. Segundo a procuradora Paula Martins-Costa Schirmer, do Ministério Público Federal, que denunciou os investigados, o grupo conta com uma espécie de banco paralelo, sistemas financeiros à margem para enviar dinheiro ao exterior para pagamento de fornecedores, e com redes de pessoas jurídicas de fachada para fazer circular o dinheiro fruto do crime:
— Existia um núcleo só com esse foco, com advogados, contadores, consultores de empresas. É um esquema sofisticado.
Uma megaoperação contra o tráfico internacional, coordenada pelas polícias de Bélgica, França e Holanda e deflagrada em março de 2021, acabou por definir o futuro dos narcoempreendedores do Sul do Brasil. A operação derrubou a plataforma de comunicação criptografada Sky ECC e forneceu aos governos de dezenas de países trocas de mensagens valiosas. Segundo Cléberson Alminhana, a Hinterland foi a primeira operação do Brasil a se debruçar sobre mensagens do Sky ECC para chegar aos autores de crimes:
— Eles usam de maneira escancarada, não falam de modo codificado.
Ao acessar as mensagens do Sky ECC, os investigadores chegaram ao principal comprador da droga da organização na Europa: o albanês Armando Pacani, ligado a um clã dos Bálcãs, segundo a PF. Ele é apontado como o dono das cargas enviadas via África Ocidental. Registros da imigração apontam que Pacani entrou no Brasil em janeiro de 2019 e saiu em agosto de 2020, em voo da Emirates de São Paulo para Dubai.
Enquanto o barco Peroá se preparava para partir rumo à África, Nascimento era preso numa luxuosa propriedade rural no Paraguai. Apontado como uma das lideranças de uma facção catarinense, ele tinha uma ordem de captura internacional, expedida a pedido da Justiça de Santa Catarina, pelas acusações de narcotráfico. Ele foi extraditado em outubro e está preso no Brasil. Procurada, sua defesa não retornou.
Pacani se encontra foragido. A Europol suspeita que esteja em Dubai, nos Emirados Árabes. Em nota, seu advogado, Eduardo Maurício, afirmou que seu cliente é inocente e alegou que a Operação Hinterland, o mandado de prisão e sua inclusão na lista de procurados da Interpol são baseados em provas ilegais oriundas de mensagens telefônicas no Sky ECC. Segundo Maurício, “a empresa Sky ECC afirma que as autoridades invadiram o software de comunicação de forma ilegal e abusiva, o que representa uma clara violação das normas e princípios constitucionais, sendo necessária a declaração de nulidade de toda prova”.
Alvarenga foi preso durante a Hinterland, em março. Sua defesa não quis se manifestar. Os irmãos Oliveira também foram presos na operação. A advogada deles não se posicionou.
A investigação foi apoiada pela Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional (Gitoc), em colaboração com jornalistas da África Ocidental. No entanto, o jornalismo é independente e a reportagem não exprime necessariamente as opiniões da Gitoc.