Isso levanta uma questão essencial: estamos dispostos a comprometer os alicerces do Estado de Direito em nome de uma suposta eficiência na aplicação da lei?
O Tribunal Federal de Justiça da Alemanha (BGH) recentemente proferiu uma decisão que parece refletir o espírito político predominante no contexto global.
Trata-se de uma deliberação polêmica, cuja repercussão pode afetar profundamente os direitos fundamentais e os princípios do Estado de Direito na Europa e em outros países que instaurarem um procedimento criminal após receberem via cooperação jurídica internacional indícios de prática de crime.
O BGH, ou Bundesgerichtshof, é a mais alta corte do sistema de jurisdição ordinária (Ordentliche Gerichtsbarkeit) na Alemanha, com sede em Karlsruhe. A decisão questionada diz respeito à admissibilidade das evidências coletadas pelo serviço de telefonia criptografado ANØM, um sistema desenvolvido e operado pelo FBI, mesmo que sua operação contrarie os princípios legais nacionais e europeus.
O ANØM, semelhante na maneira criptografada de chats de conversas com outros serviços de comunicação criptografada como SKY ECC, Encrochat e Matrix, foi projetado ostensivamente para monitorar redes criminosas. No entanto, o FBI, impossibilitado de operar tal sistema nos Estados Unidos devido às restrições legais, supostamente recorreu à colaboração de um estado membro da União Europeia. A ausência de transparência sobre esses detalhes levanta sérias questões jurídicas e éticas.
De acordo com a decisão do BGH, é suficiente que as autoridades alemãs tenham conhecimento indireto — ou “por ouvir dizer” — de decisões judiciais estrangeiras que embasaram a coleta de provas. Essa abordagem dispensa a necessidade de comprovar a existência ou o teor dessas decisões. O princípio do reconhecimento mútuo, segundo o tribunal, justificaria essa prática, mesmo que baseada em informações vagas ou não confirmadas.
Essa posição abre precedentes preocupantes. Ela sugere que investigações transnacionais podem ocorrer sem observância das normas processuais alemãs ou europeias, permitindo violações de direitos fundamentais sob a justificativa de eficiência na aplicação da lei.
A decisão contrasta com recentes entendimentos do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), que reafirmaram a necessidade de respeitar os princípios fundamentais do Estado de Direito. A legitimação de métodos potencialmente ilegais por parte do BGH pode indicar uma flexibilização perigosa das garantias constitucionais, desde que os alvos das medidas sejam considerados “as pessoas certas”.
Isso levanta uma questão essencial: estamos dispostos a comprometer os alicerces do Estado de Direito em nome de uma suposta eficiência na aplicação da lei?
No caso do ANØM, as evidências digitais apresentadas são marcadas por ilegalidades que comprometem sua validade jurídica. A operação do sistema, conduzida em caráter de “fishing expedition” (uma busca indiscriminada por provas de crimes, a famosa “pesca probatória”), contraria os preceitos legais sobre interceptação de comunicações, cadeia de custódia e confiabilidade da prova digital.
Além disso, a ausência de garantias quanto à preservação e originalidade dos dados colhidos mina a credibilidade das evidências, violando princípios constitucionais fundamentais. Nesse contexto, o trabalho pericial torna-se essencial para garantir a conformidade técnica das provas, aliado a uma defesa jurídica robusta e informada.
A admissibilidade das provas coletadas pelo ANØM (e também do SKY ECC, Encrochat e Matrix) expõe uma tensão entre a eficiência investigativa e a preservação dos direitos fundamentais. Ainda que o combate ao crime seja uma prioridade, não se pode permitir que princípios constitucionais sejam negligenciados em nome de resultados, a ordem deve ser preservada.
A aplicação da lei deve respeitar as garantias legais e os valores democráticos, sob pena de comprometer a própria legitimidade das instituições de justiça.