As falhas na cadeia de custódia, a ausência de material bruto e a falta de transparência na documentação dos arquivos demonstram os riscos do uso de provas digitais obtidas por meios questionáveis.
A discussão sobre a (in)admissibilidade das provas obtidas por meio da interceptação das comunicações do EncroChat e outros aplicativos criptografados tem gerado intensos debates nas cortes europeias.
A questão central envolve a legalidade da obtenção de provas em investigações transnacionais e os limites da cooperação internacional na persecução penal, considerando os direitos fundamentais dos investigados.
Importante analisar os principais aspectos de recente decisão do Tribunal Regional de Berlim, na Alemanha, na qual, em um caso de tráfico internacional, considerou inadmissíveis as provas obtidas através do aplicativo do EncroChat, especialmente em razão da inobservância dos procedimentos adequados na coleta e compartilhamento dos dados utilizados. O EncroChat era um serviço de mensagens criptografadas amplamente utilizado por indivíduos e grupos criminosos para comunicação segura.
Em 2020, autoridades francesas invadiram os servidores do EncroChat e coletaram dados em larga escala, compartilhando essas informações com forças de segurança de diversos países, incluindo a Alemanha.
No caso concreto, a obtenção dos dados ocorreu sem a devida autorização ou supervisão das autoridades alemãs, incorrendo em vício de procedimento, visto que o Código de Processo Penal Alemão (Strafprozeßordnung – StPO) exige expressamente que:
§ 100 Procedimento em caso de apreensão de correspondência e solicitação de informações
(1) A autorização para as medidas previstas no § 99 é de competência exclusiva do tribunal, sendo também da competência do Ministério Público em caso de urgência.
A decisão pontuou, ainda, contrariedade à Diretiva 31 da Ordem Europeia de Investigação, a qual determina que o Estado que pretende implementar alguma medida de investigação internacional – como a quebra de sigilo telemático -, deve, obrigatoriamente, informar o Estado no qual o alvo da medida está localizado.
Entre os principais argumentos jurídicos da decisão está a Violação à Carta de Direitos Fundamentais da UE, que é a coleta massiva de dados sem consentimento ou em desacordo com a base legal específica violou a proteção aos dados pessoais garantida pelos artigos 7 e 8 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Cabe destacar também a “Proteção da Comunicação pela Lei Fundamental da Alemanha”. O Artigo 10 da Lei Fundamental da Alemanha assegura a inviolabilidade das comunicações, protegendo a privacidade das pessoas. A invasão dos servidores do EncroChat, sem uma base jurídica clara no direito alemão, violou essa garantia e comprometeu a confiabilidade das provas obtidas.
Outro argumento é a “Falha na Cadeia de Custódia e Documentação das Provas”. A ausência de registros adequados sobre a manipulação e transferência dos dados coletados comprometeu sua validade probatória. Não foi possível rastrear com precisão o percurso das evidências, e a polícia francesa não disponibilizou o material bruto, impossibilitando a verificação da autenticidade e da integridade das mensagens interceptadas.
E vale citar também a “Falta de Supervisão e Autorização das Autoridades Alemãs”. A cooperação internacional deve respeitar os princípios da soberania e do devido processo legal. No entanto, a obtenção dos dados do EncroChat ocorreu sem qualquer supervisão judicial alemã, contrariando o artigo 31 da Diretiva EEE e a Seção 91g(6) da Lei de Direito Penal Internacional (IRG). Isso comprometeu a legalidade das provas no ordenamento jurídico alemão.
A decisão do Tribunal Regional de Berlim evidencia a centralidade das garantias processuais no processo penal democrático e a importância da legalidade na obtenção de provas.
A inadmissibilidade das evidências obtidas por meio da invasão do EncroChat reforça a necessidade de um controle judicial rigoroso sobre investigações transnacionais, prevenindo abusos e violações de direitos fundamentais.
As falhas na cadeia de custódia, a ausência de material bruto e a falta de transparência na documentação dos arquivos demonstram os riscos do uso de provas digitais obtidas por meios questionáveis.
Esse precedente também pode ser aplicado em outros casos envolvendo outros telefones criptografados, como SKY ECC, ANOM, BC1, Matrix, Grafeno e outros. A decisão fortalece a jurisprudência, podendo influenciar futuras deliberações sobre a admissibilidade de provas obtidas por meio de hacking e vigilância digital, especialmente em casos que envolvam a cooperação internacional.